Opinião

Trabalho (In)Digno

O dia era de festa: chegara final­mente o dia do casamento de um casal amigo, num final de tarde pro­missor, onde tudo parecia estar em perfeita sintonia com a felicidade que ambos traziam no olhar. Sem que nada o fizesse antever, um dos pre­sentes aproximou-se de mim, assegu­rou-se que era eu e sussurrou: “Trabalho há mais de 20 anos naquela empresa (privada) e nunca consegui receber nem mais um cêntimo do que o Ordenado Mínimo Regional. Tenho ainda a sorte de receber um Subsídio de Alimentação, coisa a que os que agora entram na empresa, já não têm direito… Não tenho nenhum seguro de saúde, nem qualquer outro tipo de re­galia.”. Lamentei, entristeci, depois en­raiveci e decidi que seria este o tema do meu próximo artigo:

Na Região Autónoma dos Açores, como noutras zonas do país, existem empresas com lucros robustos que continuam a pagar apenas o salário mínimo a trabalhadores com décadas de serviço. Esta prática, ainda que legal, é eticamente reprovável e reflete uma visão mesquinha da gestão, onde o lucro se sobrepõe à dignidade de quem trabalha.

Numa região marcada por assime­trias e agravada pela insularidade, o custo de vida torna esta realidade ainda mais cruel. O trabalho, que de­veria garantir progresso e estabili­dade, torna-se para muitos açorianos uma prisão sem reconhecimento nem perspetiva de melhoria. A experiência e lealdade, de quem permanece anos numa empresa, não podem nem devem ser deliberadamente, ignora­das. Assim como o salário mínimo, que deveria ser apenas o ponto de par­tida, pode ser transformado no des­tino final.

As consequências desta prática não são apenas individuais – são coletivas e estruturais. A começar pela vida dos próprios trabalhadores, que se veem impedidos de aceder a condições bá­sicas de estabilidade: adquirir uma casa, planear uma família com segu­rança, poupar para o futuro ou investir na educação dos filhos. Viver com o mínimo durante anos é viver sempre no limite, em constante ansiedade fi­nanceira, numa precariedade per­manente que esvazia o presente e compromete o futuro.

Além disso, esta estratégia de con­tenção salarial enfraquece a econo­mia regional. Trabalhadores mal pagos consomem menos, dinamizam menos o comércio local, contribuem pouco para o crescimento do mercado interno. E, frequentemente, acabam por recorrer a apoios públicos para su­prir carências básicas, o que significa que o Estado e, por conseguinte, todos os contribuintes – acaba por subsidiar de forma indireta as empresas que optam por pagar o mínimo legal e esta é uma perversão do sistema que exige correção.

É preciso promover políticas de in­centivo à progressão salarial, distin­guir boas práticas e sensibilizar as empresas que insistem em manter os seus trabalhadores cativos no salário mínimo, na mais-valia de investirem nos seus colaboradores, e do impacto positivo que qualquer empresa tem quando na presença de funcionários reconhecidos, mais felizes, e ainda mais motivados.

A justiça social começa na digni­dade do salário. E um salário digno é aquele que valoriza o tempo, a dedica­ção e a competência. Pagar o mínimo possível a quem dá tudo de si é mais do que injusto – é uma afronta ao valor do trabalho.

PS – Quiçá, o lado mais nobre da ati­vidade política, seja o dever de sermos a voz daqueles que connosco parti­lham as suas preocupações.